Numa fria manhã de janeiro de 1967, em plena guerra civil da Guatemala, um comerciante judeu libanês é sequestrado num beco sem saída da capital. Muitos depois, um narrador chamado Eduardo tem um encontro num bar escuro e lúmpen para esclarecer os pormenores da vida e o sequestro daquele homem que também se chamava Eduardo Halfon, e que era seu avô. Este o acontecimento que põe em andamento Canción, um pequeno livro com pouco mais de cem páginas que li de uma assentada devido à fluidez da sua prosa sedutora.
Escolhemo-lo para para leitura na Comunidade de Leitores do ICIA por recomendação da escritora Lídia Jorge que na contracapa de Luto, outra pequena pérola literária, escreveu:
Luto provém dos territórios de todas as latitudes, pela delicadeza da sua mensagem, pela universalidade do seu tema, pela eficácia da sua narrativa. Havia muito tempo que não lia um pequeno livro tão poderoso. Este livro coloca Eduardo Halfon entre os grandes escritores modernos da América Latina.
Lídia Jorge
Uma narrativa de puro deleite, em que Halfon junta as suas memórias aos segredos da família, e que vai rodando em torno da história de Salomón, tio do narrador, que morreu na infância e se tornou tabu. Foi em Luto que li um dos mais belos e cativantes começos de romances:
Chamava-se Salomón. Morreu quando tinha cinco anos, afogado no lago de Amatitlán. Era o que me contavam em criança, na Guatemala. Que o irmão mais velho de meu pai, o primogénito dos meus avós, aquele que teria sido meu tio Salomón, morrera afogado no lago de Amatitlán, num acidente, quando tinha a mesma idade que eu, e que nunca se encontrara tinham o seu corpo. […] Eu não conhecia os pormenores do seu acidente, e tão pouco me atrevia a perguntar. Ninguém na família falava de Salomón. Ninguém pronunciava sequer o seu nome.
Em Luto (2017) e em Canción (2021), os universos tocam-se, melhor dizendo, sobrepõem-se. No primeiro, o narrador regressa à casa dos avós, que conhecia da infância, depois de ter ido morar para os Estados Unidos, forçado pelas convulsões da Guatemala nos inícios da década de 80. A partir daí, a personagem, que tem o nome do autor, pega em elementos biográficos para fazer uma recomposição da memória numa tentativa de preencher o vazio.
E em ambos, tal como em El boxeador polaco (2008), Monasterio (2014) ou Signor Hoffman (2015), um narrador com o nome de Eduardo Halfon narra andanças através de meio mundo para desvendar a história da sua família: a morte misteriosa de um tio, a lição de um professor arrogante ou do pugilista que treina o seu avô em Auschwitz e o salva da morte certa.
E tal como nos romances anteriores, Halfon usa em Canción um evento inaugural – com a história do rapto do seu avô empresário, que o leva, como adulto, a investigar a vida do homem que o sequestrou nos anos de chumbo da Guatemala -, para pôr em andamento uma história sem ordem cronológica, com saltos entre as suas memórias de as de outras personagens, e entre o passado e o presente, num aparente caos narrativo. Um pequeno romance feito de fragmentos densos, misturando memórias de infância e reconstrução histórica, que se inscreve num projeto literário maior para o qual confluem as diferentes novelas que vai publicando.
Uma espécie de projeto literário em marcha, que se formou sem plano prévio, como o autor confessa em numa entrevista a Alona Rodríguez (in Letras Libres, 24 fev. 202):
E o que veio a seguir já nós o sabemos, Un hijo cualquiera (2022) um livro de contos em que o autor revisita alguns dos temas favoritos do seu universo literário: a infância, o desenraizamento, a morte, a vocação do escritor ou a procura da sua própria identidade, sempre com a mesma economia de meios inversamente proporcional ao resultado obtido.
Estava no Japão para participar num congresso de escritores libaneses. […] tinha aberto o armário e encontrara lá o disfarce libanês – entre os meus tantos disfarces. […] E nunca me tinham solicitado que fosse um escritor libanês. Escritor latino-americano, com certeza. Escritor centro-americano, cada vez menos. Escritor norte-americano, cada vez mais. Escritor espanhol, quando era preferível viajar com esse passaporte. Escritor polaco, numa ocasião, numa livraria de Barcelona que insistia – insiste – em colocar os meus livros na prateleira de literatura polaca. Escritor francês, desde que vivi uns tempos em Paris e alguns supõem que continuo lá. Guardo todos esses disfarces, bem passados a ferro no armário.
Aqui fica o convite para nos sentarmos à mesa da Taberna Porta Velha, em Portimão, para, numa roda de amigos de copo de rum guatemalteco na mão, conversarmos sobre os livros de Halfon, na Comunidade de Leitores do ICIA. E talvez ele nos faça uma aparição disfarçado de escritor português.
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Biobibliografia de Eduardo Halfon. Nasceu em 1971 na cidade de Guatemala e atualmente, vive em Berlim. É autor dos livros Esto no es una pipa, Saturno (2003), De cabo roto (2003), O Anjo Literário (2004), Siete minutos de desasosiego (2007), Clases de hebreo (2008), Clases de dibujo (2009), El boxeador polaco (2008), La pirueta (2010), Mañana nunca lo hablamos (2011), Elocuencias de un tartamudo (2012), Monasterio (2014), Signor Hoffman (2015), Luto (2017), Biblioteca bizarra (2018) e Canción (2021). A sua obra foi traduzida em inglês, alemão, francês, italiano, sérvio, português, holandês, japonês, turco, norueguês e croata. Em 2007 foi nomeado um dos trinta e nove melhores escritores latino-americanos pelo Hay Festival de Bogotá. Em 2011 recebeu a bolsa Guggenheim, e em 2015 foi-lhe outorgado em França o prestigioso Prémio Roger Caillois de Literatura Latino-americana. Luto foi galardoado com o Prémio das Livrarias de Navarra 2018 (Espanha), o Prémio de Melhor Livro Estrangeiro 2018 (França), o Prémio Edward Lewis Wallant 2018 (EUA) e o Prémio Internacional do Livro Latino 2019 (EUA). Em 2018 Halfon recebeu o Prémio Nacional de Literatura de Guatemala, o maior galardão literário do seu país natal.